Boca Juniors conquista o título argentino na última rodada

Grande parte da história moderna do Boca Juniors estava representada na noite de sábado, na Bombonera. Em campo, o contestado Carlos Tevez, ídolo de longa data, até pouco tempo vivendo um ócio remunerado, que reencontrou o rumo sob o comando de Miguel Angel Russo. Na casamata adversária, Maradona, hoje técnico do Gimnasia, que leva o Boca estampado na pele e pregado no coração. E, nos camarotes, sempre impávido, Juan Román Riquelme, hoje vice-presidente de futebol, o homem que ainda fez tremer de saudade a espinha do bairro de La Boca.

A presença de Riquelme no estádio, diante das câmeras, significa muito mais do que a imagem de alguém que levou o clube a um predomínio absoluto na América. No fim do ano passado, as eleições tiraram do comando da instituição de La Ribera o presidente Daniel Angelici e o grupo político que, na percepção de grande parte da torcida, se distanciava da identidade popular (e vencedora) que marca o Boca Juniors, tentando, entre outras coisas, questionar a existência da Bombonera, sabidamente o epicentro da paixão xeneize. A chegada de uma nova gestão, liderada por Jorge Amor Ameal e abraçada por Riquelme, é vista como um forma de o Boca voltar a ser o Boca que sua torcida reconhece.

Nos últimos tempos, a identidade xeneize fora perdida também dentro da cancha. Acostumado a vergar o tradicional rival em momentos cruciais, o Boca Juniors se viu surrado pelo River Plate de todas as formas e em vários lugares do mundo. O que faltava para lustrar os dourados sapatos de Marcelo Gallardo era justamente o título do campeonato argentino, troféu que faltava entre os muitos erguidos desde 2014, quando El Muñeco chegou ao clube. E o River marchava solene para a taça, até que Miguel Angel Russo assumiu o Boca Juniors e enfileirou uma série de cinco vitórias que fizeram a vantagem millonaria, na última rodada, ficar em apenas um ponto.

Em sua atual passagem pelo Gimnasia de La Plata, Maradona tem sido homenageado em qualquer cancha que visite. Na Bombonera de seus amores, obviamente seria exaltado de todas as formas, com amor e sofreguidão, mas a principal reverência tão singela quanto inesperada: antes do jogo começar, Carlos Tevez dirigiu-se ao banco adversário e lhe tascou um arrebatado beijo na boca. Riquelme, Maradona e Tevez, todos ídolos do clube, já tiveram (e têm) atritos entre si, mas estavam reunidos sob o mesmo céu do sul de Buenos Aires em uma noite que definitivamente não admitia um desfecho previsível.

Tanto Atlético Tucumán quanto Gimnasia se mostraram adversários valerosos. Quando o Decano abriu o placar diante do River, no norte do país, e na Bombonera persistia o empate, deixando tudo empatado em pontos, desenhava-se mais um Superclasico decisivo, coisa que ninguém do lado de lá da fronteira aguenta mais. O time de Gallardo logo buscou o empate, mas às margens do Riachuelo o segredo do ferrolho platense enfim foi desvendado quando Carlos Tevez mandou um balaço da entrada da área. E o Carlos Tevez de 2020 correu e comemorou como se fosse o Carlos Tevez de 2004. Como a vida é uma eterna roleta que volta e meia se detém no mesmo ponto, especialmente se este ponto nos custa dinheiro ou vergonha, Riverdo Zielinski, técnico da esquadra tucumana, era o comandante do Belgrano que rebaixou o River Plate quase uma década atrás.

A cidade de San Miguel de Tucumán é conhecida como Jardín de La República, pois lá se reuniu o congresso que em 1816 declarou a independência da Argentina em relação à Espanha. Pois no sábado, por vias paralelas, a cidade se transformou provisoriamente no canteiro que redimiu La República de La Boca, já que permitiu ao tradicional clube azul y oro retomar, ao menos por uma noite, sua identidade. Uma identidade que não é baseada somente na vitória, mas que também a tem em alta conta, especialmente se do outro lado está o River Plate. E quando as câmeras mostravam Riquelme impassível em meio à loucura, sorvendo com disciplina seu mate enquanto o Rio de La Plata atingia ponto de fervura, a mensagem que o eterno camisa dez passava é de que o normal, para o Boca, é vencer. De preferência, na presença dos seus ídolos e de sua gente, e no seu bairro.

Globoesporte