Todos os que vivem entre o Chuí e a (muy) bela e (às vezes) Santa Catarina sabem: Gre-Nal não é jogo, mas um fardo. E só é admitido quando se percebe que não há escapatória. Ou seja, quando ambos os times estão perfilados de frente, as geometrias polares se ajustam e a bola sai rolando, indiferente, como se aquele fosse apenas mais entre tantos outros encontros futebolísticos perdidos no calendário. Mas andava impossível disfarçar as evidências, que se acumulavam e ameaçaram desabar sobre nossas cabeças até que hoje finalmente atendem ao ultimato dos fregueses mais exigentes. Do outro lado do balcão, ao mesmo tempo maravilhados e em pânico, colorados e gremistas.
Com a vitória sobre o Tolima, em pré-histórica noite porto-alegrense, o Internacional garantiu a realização dos primeiros clássicos gaúchos da história da Libertadores. “Não são eliminatórios!”, desde já grita a gente mais assustada, mas calmem que o pavor é de graça: é possível que também o sejam. Afinal de contas, o Grupo E conta ainda com América de Cali e Universidad Católica, os atuais campeões de Colômbia e Chile, e qualquer combinação entre classificados e eliminados hoje parece bastante plausível. É enorme a chance, portanto, de que os clássicos gaúchos sejam decisivos.
As placas tectônicas sob Porto Alegre vão se abrir e fechar, e depois se abrir e fechar e se contorcer, em 12 de março, na Arena, e 8 de abril, no Beira-Rio, na segunda e na quarta rodada da chave, fazendo com que o Rio Grande do Sul vivencie, talvez, sua experiência etílico-desportiva-cultural mais extrema desde que Brizola agarrou uma garrucha e desbravou os subterrâneos de Porto Alegre para debrear o golpe contra João Goulart. Hoje existe uma estátua de Leonel Brizola com dedo em riste ao lado do Palácio Piratini, casa do governo gaúcho, mas o bronze ereto recortado na paisagem, sabem outros monumentos, não garante legalidade e nem sanidade.
Mas tergiverso (pois assim se comportam os que esperam o Gre-Nal: falando sobre o tempo e outras revoluções). Em notas mais objetivas, em 13 de agosto de 2008 o argentino Andrés D’Alessandro estreava pelo Inter, justamente em um clássico Gre-Nal, válido pela Copa Sul-Americana. A história nos confidencia que foi o último encontro clássico em fase eliminatória por alguma instância acima do Gauchão. E agora D’Alessandro provavelmente estará em campo no primeiro clássico gaúcho da história da Libertadores, carregando na carcaça de 38 lustrosas primaveras praticamente um ciclo inteiro de Gre-Nal. Quase tudo que é possível escrever sobre o clássico nos últimos doze anos está impresso no seu indisfarçável e inquieto chassi de grilo.
E, na noite de quarta, mais uma vez como vidente e protagonista, desenhou a jogada que anteviu o abismo — o diabo entende mais de cozinha por saber misturar uns temperos –, saracoteando de um lado para outro e convidando Paolo Guerrero para sentar à mesa. D’Alessandro acabou expulso, pois ele é um homem e suas circunstâncias, como provavelmente tenta explicar, de forma amorosa, o folião que saiu na última sexta-feira para comprar um guaraná e apenas hoje volta pra casa, um pouco manco e com olhar vazio — e sem o guaraná. Tudo já era véspera: colorados e gremistas ganiam de êxtase e pavor pela noite de Porto Alegre. Depois daquilo, como no último Gre-Nal, o Internacional de Chacho Coudet fez uma bela partida com um jogador a menos.
E, como nos últimos muitos Gre-Nais, os colorados vão desafiar um Grêmio que vive um momento histórico superior. Como nos últimos todos clássicos, Grêmio e Inter vão disputar algo que às vezes até remete a um evento esportivo. É mais um encontro inevitável e aterrorizante entre aqueles que muito se conhecem, e talvez a maior parte do continente não entenda, assim, de primeira, quando os capitães se estapearem no momento de sortear o lado do campo, ou quando um torcedor for flagrado em desespero, quase lacrimejando na arquibancada, porque seu time cedeu um lateral na metade do campo.