Resenha de álbum
Título: Abricó-de-macaco
Artista: João Bosco
Gravadora: MP,B Discos / Som Livre
Cotação: * * * *
♪ João Bosco sempre recriou bem a própria criação. Reinvenção da nação sem fronteiras musicais fundada em 1972 por esse artista mineiro de vasta vivência carioca, Abricó-de-macaco – álbum que Bosco lançará em maio, em edição digital e nos formatos de CD e DVD (com o registro audiovisual que será exibido pelo Canal Brasil) – se insere em linha revisionista.
O repertório contabiliza somente duas músicas inéditas – Abricó-de-macaco e Horda, parcerias de João com o filho letrista Francisco Bosco – em 16 faixas gravadas em estúdio em sessões realizadas em outubro de 2019.
A intenção foi que tudo soe novo de novo. E, para ouvidos apurados, a trama tecida na introdução instrumental de Mano que zuera (João Bosco e Francisco Bosco, 2017) já basta para dar frescor a essa música que batizou o último álbum de inéditas de Bosco, lançado há três anos. É quando Bosco, no toque personalíssimo do próprio violão, interage com o trio-base do disco, formado pelos músicos Guto Wirtti (baixo), Kiko Freitas (bateria) e Ricardo Silveira (guitarra).
No samba-título Abricó-de-macaco, batizado com nome de árvore amazônica, o violão de Bosco puxa sozinho o fio do antigo samba Linha de passe (João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio, 1979) para redesenhar os contornos da nação musical desse artista que bebeu das fontes barrocas das Minas Gerais, da bossa nova, do jazz, do blues, da música africana e dos sons das arábias para liquidificar esse coquetel de boas influências em cadência brasileira que geralmente recorre ao samba.
A planta que dá nome ao samba Abricó-de-macaco está enraizada no norte do Brasil, região que inspirou Senhora do Amazonas (1984), parceria de Bosco com Belchior (1946 – 2017) também incluída na revisão.
Com livre trânsito em todo o território brasileiro, Bosco também é de Nanã e, por isso, parte para a Bahia africana no medley que emenda Cordeiro de Nanã (Mateus Aleluia e Dadinho, 1977) com o samba Nação (João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio, 1982), este já em si uma reinvenção em tons afros da Aquarela do Brasil (1939) de Ary Barroso (1903 – 1964).
Com outra escala na Bahia para repisar o samba Terreiro de Jesus (João Bosco, Edil Pacheco e Francisco Bosco, 2002), reapresentado sem o dendê da gravação original feita para álbum lançado há 18 anos, a viagem do artista pela própria nação musical abre espaço para a reconstrução do gagabirô de Cabeça de nego (João Bosco, 1986) em abordagem com citações nominais dos seminais João da Baiana (1887 – 1974) e Pixinguinha (1897 – 1973).
Praticamente um idioma particular do cantor, o gagabirô conduz a interpretação vocalizada da canção norte-americana My favorite things (Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II, 1965) e ressoa nos vocais ruminados na introdução de Horda (João Bosco e Francisco Bosco), inédita em que o artista, atento aos sinais, capta tensões nacionais da nação em desconstrução.
João Bosco jamais perde a classe ao recriar as criações, embora, a rigor, nem tudo soe com a força dos arranjos das gravações originais, de Bosco ou de intérpretes como a cantora Clara Nunes (1943 – 1982), propagadora do samba Nação. Alguma eletricidade se perdeu quando Bosco volta a iluminar Holofotes (João Bosco, Antonio Cicero e Waly Salomão, 1991), por exemplo.
Se o samba Profissionalismo é isso aí (João Bosco e Aldir Blanc, 1980) vira blues, Forró em limoeiro (Edgar Ferreira, 1953) é reanimado com a vivacidade vocal dos cantores Alfredo Del-Penho, João Cavalcanti, Moyseis Marques e Pedro Miranda, também presentes como convidados em Pagodespell (João Bosco, Caetano Veloso e Chico Buarque, 1995), faixa introduzida pelo canto do samba Escapulário (Caetano Veloso a partir de poema de Oswald de Andrade, 1925 / 1975) em citação sagaz porque Chico escreveu a letra de Pagodespell com inspiração em versos do poeta modernista.
Samba com o qual a escola Estácio de Sá desfilou no Carnaval de 1985, com enredo que celebrava o choro, o belo Chora, chorões (Caruso, Djalma Branco, Djalma da Mercês e Nei Jangada) ganha a voz de Bosco em repertório que também rebobina o afro-samba Água de beber (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, 1961).
Enfim, a nação musical de João Bosco é frondosa. O álbum Abricó-de-macaco dá alguns frutos porque, no gagabirô do artista, uma colheita nunca resulta igual à outra.
Blog do Mauro Ferreira