Resenha de espetáculo de teatro
Título: A esperança na caixa de chicletes ping-pong
Texto: Clarice Niskier, com inspiração na obra de Zeca Baleiro
Direção: Clarice Niskier com supervisão de Amir Haddad
Direção musical: Zeca Baleiro
Local: Teatro Petra Gold – Sala Marília Pêra (Rio de Janeiro, RJ)
Data: 7 de março de 2020
Cotação: * * * 1/2
♪ Vô imbolá, título do segundo álbum de Zeca Baleiro, lançado em 1999, bem poderia ser o nome do monólogo A esperança na caixa de chicletes ping pong, estreado oficialmente pela atriz Clarice Niskier na sexta-feira, 7 de março, após leituras e ensaios abertos deste espetáculo baseado na obra de Baleiro e caracterizado no programa da peça como “comédia pop lírica”.
Guiada pela lírica incisiva do cancioneiro do compositor maranhense projetado em escala nacional em 1997, a atriz embola múltiplos fragmentos da obra musical do artista – entre outros textos e/ou versos, como os da canção Paratodos (Chico Buarque, 1993) – para tecer crônica mais saudosa do que esperançosa sobre um Brasil sonhado, vislumbrado, mas em processo de decomposição.
Com porção farta de melancolia e com algum humor, Niskier traça rota que parte das origens da dinastia da artista para chegar às reflexões extraídas de extensa pesquisa sobre a obra de Baleiro, cujo cancioneiro combina introspecção e irreverência em doses nem sempre exatas.
Embora jamais possa ser enquadrado na moldura dos musicais, o espetáculo A esperança na caixa de chicletes ping pong se alimenta de música, sobretudo de letra de música, matéria-prima do texto. As gravações originais do Samba do approach (Zeca Baleiro, 1999) e das canções À flor da pele (Zeca Baleiro, 1997) e Era domingo (Zeca Baleiro, 2016), por exemplo, reverberam em cena na voz do autor.
Diretor musical do espetáculo, Baleiro compôs e gravou o tema instrumental Os portugueses – motor inicial do texto – e registrou duas obras-primas do compositor Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959), Bachianas brasileiras nº 5 (1938) e Melodia sentimental (1958) para a peça, além de ter posto voz em tons comedidos na canção Tudo passará (Nelson Ned, 1969). Em cena, a atriz reforça a interpretação deste sucesso do cantor mineiro Nelson Ned (1947 – 2014) e incentiva o coro da plateia no momento de maior empatia do monólogo.
Reeditando o tom coloquial do espetáculo A alma imoral (2006 / 2020), o maior sucesso da carreira teatral de Niskier, a atriz procura desde o início estabelecer forte cumplicidade com o público. É como se o palco da Sala Marília Pêra, do Teatro Petra Gold, fosse a sala da casa da atriz.
Se o clima de intimidade e cumplicidade entre atriz e espectador se dilui ao longo das cerca de duas horas do espetáculo, é porque a caixa de chicletes está cheia demais e precisa ser esvaziada. Supervisor da direção orquestrada pela própria Clarice Niskier, Amir Haddad falhou ao não detectar que o texto precisa de edição severa para beneficiar o intenso fluxo de reflexões feitas a partir da obra de Zeca Baleiro. Na segunda metade, o monólogo começa a soar progressivamente difuso, repetindo recados já dados.
“A palavra é necessária diante do absurdo”, enfatiza Niskier em cena, se valendo de verso de Hilda Hilst (1930 – 2004). Contudo, há excesso de palavras em texto que também se alimenta de referências de ideias e ideais de pensadores como Sérgio Buarque de Holanda (1902 – 1982) e Ferreira Gullar (1930 – 2016).
Mas é preciso fazer justiça ao bom acabamento da costura alinhavada por Niskier. O encadeamento de cerca de 50 canções de de Zeca Baleiro, com algumas letras reproduzidas na íntegra e outras em parte, produz texto que faz sentido no Brasil de 2020, país de “sonhos sem futuro e de esperanças reduzidas a pó”, como já apontou Zeca Baleiro há quatro anos na letra da canção Homem só (2016).
Sim, Clarice Niskier “imbola” tudo e até se alonga em cena, mas sem perder o fio da meada.